A condenação ao aluguel, ao “morar de favor” ou à informalidade

Municipolis
13 min readSep 27, 2022

--

O problema do acesso à moradia no Brasil torna o “sonho da casa própria” cada vez mais distante

Rio de Janeiro, 27 de setembro de 2022

Por Guilherme Soares Rodrigues da Silva

Janela com barras voltadas para um morro e casas populares. Imagem: Unsplash, com edições próprias.

Introdução

O Brasil é um país de latentes desigualdades que, mesmo diante da promessa de um Estado de bem-estar social, aspiração inegavelmente fincada na nossa Constituição Cidadã, parece ter momentos de estagnação — quando não de regressão —, em termos de políticas públicas sociais, no lugar do progresso que lhe seria esperado. A garantia da moradia, direito social preceituado no caput artigo 6º da Carta Magna, é um dos fins a serem perseguidos pelo Estado brasileiro em sua missão constitucional, tendo, inclusive aplicabilidade imediata (Piovesan, 2015). Contudo, a efetivação desse direito social tem sido, cada dia mais, difícil na prática, especialmente para a população hipossuficiente, mesmo considerada a competência comum de todos os Entes Federativos para implementar programas habitacionais sociais (art. 23, IX, da Constituição). Colocam os referidos dispositivos:

Art. 6º, caput, CRFB:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 23, IX, CRFB:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

[…]

IX — promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;

Duas pessoas conversando diante de uma paisagem de prédio. Imagem: Unsplash com edições próprias.

A dificuldade de comprar um imóvel se acentuou

A população brasileira empobreceu nos últimos dez anos (Gerbelli, 2022), um revés da tendência de fortalecimento da classe C que se vinha observando desde o início dos anos 2000. A crise econômica recente provocou um novo inchaço das classes D e E e enrijeceu a mobilidade social. A renda mensal média do Brasileiro em 2022 é de R$2.693,00, segundo dados da Pnad contínua do IBGE (IBGE, 2022), ligeiramente maior do que a renda mensal média de 2020, que foi de R$2.638,00, mas ainda assim uma recuperação da queda abrupta que foi marcante em 2021, ano em que a renda média decaiu quase R$150,00 (R$2.476,00) — a pior renda média desde 2012. Apesar de a renda ter voltado a superar a cifra pré-pandêmica, a inflação faz com que, ainda assim, o poder aquisitivo tenha se reduzido expressivamente.

Outros dados são capazes de mostrar essa diminuição brusca da renda média. Ao analisarmos a renda domiciliar mensal média per capita, é possível notar ainda mais o empobrecimento da população brasileira, haja vista que essa margeia o valor de um salário-mínimo, sendo de R$1.353,00 neste ano, um valor completamente incapaz de prover uma vida digna ao trabalhador, que lhe permitisse o saciamento das suas necessidades básicas, que dirá sustentar uma família — ainda mais diante das perdas inflacionárias. Denota-se, também, por meio deste indicador, uma acentuação notória das desigualdades regionais. É possível observar a queda do rendimento médio real domiciliar per capita por região na tabela abaixo.

Fonte: IBGE

Comprar um imóvel, nessas condições, torna-se, cada vez mais, difícil. A fim de estudar o acesso popular ao mercado imobiliário, a empresa Urbit, de inteligência imobiliária, realizou uma pesquisa que conjugou dados socioeconômicos regionais, renda e até mesmo características dos imóveis disponíveis no mercado (como proximidade a escolas, pontos de ônibus e outros atrativos e facilidades) para saber o que uma pessoa em determinada faixa de renda, em determinadas condições (taxa de juros de 8% ao ano, possibilidade de até 360 meses de parcelas e um comprometimento de até 30% da renda mensal e 30% da quitação do imóvel como entrada), pode adquirir (de mais caro) num determinado mercado imobiliário.

A pesquisa trouxe resultados pouco animadores sobre a realidade imobiliária frente à realidade da renda do cidadão médio brasileiro. Na classificação das cidades pelo grau de acesso acesso ao mercado imobiliário pela população, a ordem ficou a seguinte:

Reprodução: Urbit/Caos Planejado

A descoberta foi de que entre 30 e 40% da população economicamente ativa das grandes capitais não têm recursos, mesmo se adicionada a renda de um parceiro, para adquirir um imóvel nas condições atuais do mercado imobiliário (Costa, 2020). A situação em São Paulo, por exemplo, é a seguinte:

Reprodução: Urbit/Caos Planejado

São números alarmantes. 80% dos Paulistas conseguem comprar apenas 17% dos imóveis. Um retrato de desigualdade.

No entanto, o subsídio de parte da compra por meio de um programa social de habitação pode ter um impacto relevante. Nesse cenário, considerando um abono de 40% (com justaposição de subsídios de pelo menos dois Entes Federativos) do valor total do imóvel após a entrada, por meio do programa Casa Verde e Amarela, é possível notar um acréscimo de 15% da população com acesso melhorado ao mercado (idem). No Rio de Janeiro, a situação é a seguinte:

Reprodução: Urbit/Caos Planejado

No Recife, a cidade menos acessível segundo o estudo, tem o seguinte cenário:

Reprodução: Urbit/Caos Planejado

A curva de Recife demonstra a existência de enormes desigualdades sociais na cidade. Para aqueles fora dos 10% mais ricos, restam ou imóveis de pior qualidade ou o mercado informal e a moradia precária.

A implantação de programas sociais de moradia é uma importantíssima maneira que o governo encontrou para tentar prover o acesso à habitação social àqueles cuja renda era insuficiente para tal, uma grande parcela da sociedade brasileira. Uma tentativa de driblar justamente esses entraves do mercado e pular a barreira de acesso.

O Minha Casa Minha Vida, programa social criado para esse fim em 2009, subsidiava a compra da casa própria para famílias de baixa renda (renda familiar até R$9.000) e oferecia juros menores de financiamento imobiliário (UOL Economia, 2019). Surgiu também como forma de estimular a atividade econômica e conter os efeitos da crise econômica mundial de 2008 (idem ibidem). Aproximadamente 5,5 milhões de famílias conseguiram se beneficiar do programa até a sua substituição pelo Casa Verde e Amarela.

Nessa sucessão, houve um golpe de misericórdia em um programa que já chegava aos seus 10 anos bem desidratado — considerando seus feitos iniciais — , mas que ainda assim provinha algumas condições melhoradas de financiamento para as classes mais baixas. Enquanto no Minha Casa Minha Vida o subsídio poderia alcançar até 95% do valor do imóvel, no Casa Verde e Amarela o subsídio federal é limitado a 20%. Neste último, no entanto, outros Entes Federativos podem subsidiar, cada um, também 20% do imóvel, podendo chegar até 60% do total do valor da compra.

Ainda assim, não parece ser possível atingir o progresso social almejado e necessário para mitigar um pouco do problema da habitação, tendo em vista que essa solução apenas toca a tangente do problema sem atingi-lo no centro. Afinal, como dar possibilidade às famílias de quitar o resto do imóvel? Sem um programa que leve a verdadeira realidade dos brasileiros em consideração, será difícil.

Dessa forma, aos que não conseguem concretizar o sonho da casa própria restam algumas opções desanimadoras: ou se vive de aluguel ou se vive “de favor” ou se parte para o mercado informal ou à moradia precária. Mesmo as duas primeiras opções — que seriam, em tese, mais adequadas à garantia do direito à moradia e ao saciamento das necessidades básicas dos ocupantes — têm muitos problemas, como se verá abaixo.

A questão da qualidade de vida em um imóvel próprio, alugado ou cedido

Na comparação de qualidade de vida para cada tipo de ocupação, o IBGE traz alguns dados interessantes sobre os principais problemas enfrentados nos imóveis ocupados atualmente. O instituto fez um levantamento que questionou os ocupantes sobre a existência dos seguintes cinco problemas estruturais: falta de espaço; falta de iluminação natural; telhado com goteira, fundação, paredes ou chão úmidos; e madeiras das janelas, portas ou assoalhos deteriorados. Ao se fazer um recorte a partir da condição de ocupação do domicílio, é possível perceber diferenças relevantes nos percentuais dos problemas de cada natureza enfrentados pelos ocupantes de imóveis próprios, alugados e cedidos. A tabela abaixo mostra algumas dessas discrepâncias.

Dados da Pnad contínua do IBGE. Tabela própria.

Com relação a problemas de espaço, apenas 30,7% dos ocupantes de imóveis próprios relataram ter problemas de falta de espaço, em contraste com 38% dos ocupantes de imóveis alugados e 42,5% dos de imóveis cedidos. Já sobre a falta de iluminação, esse foi um problema presente para 22,1% dos ocupantes de imóveis próprios, 25% dos de imóveis alugados e 28% dos de cedidos. A umidade na fundação, chão ou paredes foi relatada de forma paritária entre ocupantes de imóveis próprios e alugados, sendo percebida por 29,5% e 29,4% dos integrantes de cada grupo; nos imóveis cedidos, esse problema foi relatado por 36% dos seus ocupantes. A deterioração da madeira das janelas, portas ou assoalhos foi relatada por 22,6% dos ocupantes de imóveis próprios, 21,8% dos ocupantes de imóveis alugados e 31,1% dos ocupantes de imóveis cedidos. O problema que mais afetou os imóveis próprios foi o telhado com goteira, sendo vivenciado por 28,1% dos ocupantes de imóveis nessa condição, 24,3% de ocupantes de imóveis alugados e 36,6% dos de imóveis cedidos.

Em avaliação geral, é notório que os imóveis que apresentam os menores percentuais de problemas por tipo são aqueles cujos ocupantes são também os proprietários. Ainda, os imóveis alugados e cedidos são aqueles que apresentam piores qualidades estruturais e que, portanto, são menos capazes de atender às necessidades mínimas de seus ocupantes. Vale o destaque de que os imóveis cedidos não apenas apresentam as piores qualidades estruturais, de forma geral, mas também as apresentam em percentuais nitidamente superiores aos outros. O impacto desse problema é nítido ao lembrar que há, aproximadamente, 19.809.000 pessoas que se encontram, atualmente, ocupando um imóvel cedido. Já aqueles que ocupam imóvel alugado são 34.549.000 pessoas, aproximadamente (IBGE, 2022).

O problema social: recortes minoritários

Mas quem são as pessoas que enfrentam esses problemas? Quem são os principais ocupantes de imóveis problemáticos? Os dados do IBGE também lançam luz sobre essa estatística, denotando enormes desigualdades. Quando são feitos os recortes sociais, ficam evidentes as questões de vulnerabilidades e hipossuficiências que perpassam esse assunto.

A partir de um recorte racial, vê-se que é o grupo de pretos e pardos que ocupa imóveis, via de regra, mais problemáticos. A discrepância é evidente. Abaixo, demonstra-se na tabela comparativa.

Dados da Pnad contínua do IBGE. Tabela própria.

Dentro desse grupo, é possível ainda ver que há pessoas em situação de hipervulnerabilidade. Mulheres pretas, solteiras e com filhos têm uma taxa de ocupação maior desses imóveis precarizados. 48,7% desse grupo lida com falta de espaço; 31,3% lidam com falta de iluminação; a umidade é um problema para 39,7% dessas pessoas; há deterioração nas madeiras de 34,6% das casas ocupadas por esse grupo; e 42,4% dessas mulheres convivem com um telhado com goteiras.

Os jovens também são aqueles que mais ocupam imóveis “problemáticos”, sofrendo mais com essa questão quando comparados a outros grupos de outras faixas etárias. Abaixo, vê-se a tabela comparativa.

Dados da Pnad contínua do IBGE. Tabela própria.

É possível ter uma ideia da razão subjacente a esse problema ao conjugarmos esses dados com outros dados relevantes. Basta ver que o grupo dos jovens e jovens adultos (referindo-se aos indivíduos na faixa dos 18 aos 29 anos) viu sua renda média despencar nos últimos dez anos, o que foi acelerado pela crise econômica recente. Em contrapartida, o preço médio do metro quadrado no Brasil, conforme mostram os dados do IBGE, seguiu a linha oposta: subiu (e subiu acentuadamente na pandemia). Pode-se observar isso com clareza no gráfico abaixo, que conjuga esses dois dados.

Dados do IBGE. Gráfico de confecção própria.

O preço médio do m² já supera o rendimento médio mensal dos jovens que acabaram de entrar no mercado de trabalho e se aproxima muito da renda dos jovens de até 24 anos. Isso significa, basicamente, que um mês de trabalho desses jovens não compra nem sequer 1m2 de um imóvel no Brasil. Vale lembrar que os preços nos grandes centros urbanos podem ultrapassar e muito o preço médio, o que torna a possibilidade de uma aquisição de um imóvel nessas localidades para essas faixas etárias ainda mais distante. Em São Paulo, por exemplo, o preço médio do m2 é de R$9.890,00 (Cancian, 2022).

Em um cenário em que os alugueres encarecem e a perspectiva de compra de um imóvel é baixa, o cenário tende a piorar. São essas populações mais vulneráveis aquelas que tendem a ser realocadas para imóveis de pior qualidade por conta de questões de acesso. Ocupar um imóvel de pior qualidade, obviamente, é um fator diminutivo da qualidade de vida e precariza o direito à moradia e até mesmo o direito à cidade.

A importância dos programas de habitação social para a economia

Uma possível mitigação para o problema seria a ampliação dos programas de habitação social, o que poderia gerar impactos positivos que se espalhem para além dos beneficiários do programa em si, à luz da experiência. Estimular o setor da construção civil pode ajudar a conter alguns efeitos da crise econômica, tal qual se percebeu nos anos posteriores à crise de 2008. Manter o setor aquecido, nesses cenários, é importante para a geração de renda, emprego e, consequentemente, melhorar a arrecadação (UOL Economia, 2019). Essa foi a lição da última crise econômica que pode servir de base para pensarmos o futuro nessa atual.

Conclusão

A falta de moradia ainda é um problema atual e real e afeta ainda mais aqueles que já se encontram em uma situação de vulnerabilidade. Diante de um cenário com perspectivas pouco animadoras de recuperação e crescimento de renda para as populações mais pobres, talvez seja a hora de olhar para esse grupo e pensar em medidas como a ampliação de programas de habitação social, cujos benefícios podem extrapolar os próprios beneficiários diretos, atingindo a sociedade como um todo, para garantir o seu direito constitucional à moradia, cujo dever é do poder público de prover, uma competência comum para todos os entes da federação, tal como previsto no art. 23, IX, da Constituição da República.

O rendimento médio do brasileiro está longe de acompanhar a tendência do preço médio do m² no Brasil. Muito pior: seguem direções contrárias. Enquanto a renda média decaiu nos últimos dez anos, tanto numericamente quanto por perdas inflacionárias, o preço médio do m² teve ascensão, acentuada, inclusive, durante o período pandêmico. Essa situação é particularmente grave aos jovens, que estão entrando no mercado de trabalho agora e estão em busca do seu primeiro imóvel.

Porém, sem condições de acesso ao mercado imobiliário, os mais jovens e os mais pobres (de forma geral) ficam “condenados” a viver de aluguel, de favor ou recorrer ao mercado informal para poder ter onde morar. E mesmo aqueles que ainda conseguem se manter na formalidade, no aluguel ou vivendo “de favor”, estatisticamente ocupam imóveis objetivamente piores, com mais problemas estruturais, degradando, certamente, a qualidade de vida desses cidadãos.

Diante de um cenário de acentuadas desigualdades no acesso ao mercado imobiliário, é extremamente necessário pensar em soluções para a crise de moradia que afeta, em especial, as populações mais vulneráveis. Traçar esse caminho é um dever mais do que necessário para corrigir as desigualdades profundas que assolam o país e para conferir a todos os brasileiros uma vida mais digna, independente de classe, e cumprir com os objetivos constitucionais estabelecidos na Carta de 1988.

Referências

PIOVESAN, Flávia. Justiciabilidade dos Direitos Sociais e Econômicos: Desafios e Perspectivas. In: Direitos Fundamentais Sociais. Brasil: Editora Saraiva, 2015. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502629639/. Acesso em: 23 de Setembro de 2022

GERBELLI, Luiz Guilherme. Brasil empobrece em 10 anos e tem mais da metade dos domicílios nas classes D e E: Levantamento da consultoria Tendências mostra que 37,7 milhões de domicílios compõem a base social do país neste ano, com uma renda mensal de até R$ 2,8 mil. G1 [online], 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/01/23/brasil-empobrece-em-10-anos-e-tem-mais-da-metade-dos-domicilios-nas-classes-d-e-e.ghtml. Acesso em: 23 de Setembro de 2022.

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Rio de Janeiro. Disponível em: Divulgação mensal | IBGE. Acesso em: 26 de Setembro de 2022.

CANCIAN, Thais. Preço médio de imóveis em São Paulo é de R$ 9.890 por m² em agosto: Preço médio de imóveis à venda fechou agosto em R$ 623 mil para apartamentos de dois dormitórios em São Paulo; Cidade Tiradentes é o bairro mais barato da capital. Exame [online], 2022. Disponível em: Preço médio de imóveis em São Paulo é de R$ 9.890 por m² em agosto | Exame. Acesso em: 26 de Setembro de 2022.

Minha Casa perto do fim? Programa habitacional popular faz 10 anos com menos dinheiro e sob pressão para mudar nome e regras. UOL Economia [online], 2019. Disponível em: Em dez anos, programa Minha Casa, Minha Vida beneficiou 5,5 milhões de famílias, passa aperto financeiro em 2019 e tem futuro incerto (uol.com.br). Acesso em: 26 de setembro de 2022.

COSTA, Enrico. Quantas pessoas conseguem comprar um imóvel no Brasil? O sonho da casa própria é limitado a poucas pessoas e cidades, e longe da realidade da maioria dos brasileiros. Caos Planejado [online]. Disponível em: Quantas pessoas conseguem comprar um imóvel no Brasil? (caosplanejado.com). Acesso em: 26 de setembro de 2022.

--

--

No responses yet