Por mais edifícios gentis!

Municipolis
12 min readSep 29, 2022

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A regulação da “hostilidade” na construção civil e dos usos do espaço público pode tornar a cidade mais agradável

Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2022

Por Guilherme Soares Rodrigues da Silva

Pessoa andando em uma calçada à frente de um prédio cinza e sem janelas em Viena, Áustria. Imagem: Unsplash.

Introdução

Quem caminha pelos grandes centros urbanos brasileiros já deve ter vivenciado alguma situação de incômodo, um desconforto ao se ver diante de um projeto arquitetônico que não parece ter sido feito para o cidadão. O incômodo pode até não ter uma origem clara, já que o design tem esse poder de influenciar até mesmo o subconsciente, atravessando os limites da consciência, mas ele certamente está ali e pauta a experiência dos cidadãos.

Por vezes, ao andar por uma calçada ampla, somos surpreendidos por um estreitamento abrupto que chega a assustar, causado por um muro de um prédio que parece querer comer um pedaço do espaço público. Ou cruzamos um prédio cuja fachada é inteiramente cinza, sem janelas, sem arte, sem detalhes. Tédio de uma ponta a outra, sem nada para chamar atenção a não ser uma porta igualmente desinteressante. Ou então quando, ao repararmos o horizonte urbano, vemos um prédio que nos dá as costas! “Onde está a frente deste prédio?” — pode se perguntar o espectador incrédulo.

Todos são exemplos daquilo que a professora de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), Gabriela Tenorio, chamaria de edifícios hostis. Esses são prédios que propagam aos seus arredores, aos espaços públicos que lhes são imediatamente circundantes ou à paisagem que integram, essa espécie de “externalidade negativa arquitetônica”, como convenciono aqui a chamar.

E se, como coloca Le Corbusier (1925), a arquitetura vira um espelho dos tempos, os tempos de mais gentileza não deveriam refletir nos projetos arquitetônicos? É o que se propõe aqui.

[…] C’est aux tournants caractéristiques, un mouvement impulsif de l’idée comune, qui manifeste en quel mode elle [l’architecture] entend ordonner ses actes. Ainsi l’achitecture devient-elle le miroir des temps. Le Corbusier (1925)

Os edifícios gentis

Os edifícios gentis são aqueles generosos com a cidade, aqueles que têm uma preocupação de melhorar a experiência dos transeuntes e daqueles que o têm como destino (Tenorio, 2022). São aqueles que se ocupam em realizar algum tipo de retribuição com a cidade que os acolheu, gerando uma melhora ao espaço público circundante.

O edifício hostil é sua antítese, é aquele que não faz nada disso. É hostil aquele edifício que coloca obstáculos ou elementos de mobiliário urbano que têm como fim o afastamento das pessoas ou restrição de seus comportamentos. Ao revés de trazer algum benefício para o espaço público, traz algum prejuízo. Restringe os seus beneficiários ao grupo dos usuários.

Essa ideia de edifícios gentis surgiu de uma disciplina lecionada pela professora e doutora Gabriela Tenorio na UnB, chamada “Avaliação de pós-ocupação de espaços urbanos”, em que há estudo de casos concretos de espaços públicos, geralmente em Brasília, que termina com a elaboração de recomendações para a melhoria daqueles espaços a partir da frequentação do público. O objetivo da disciplina é que o espaço seja capaz de atrair e manter mais pessoas, garantindo uma vivacidade do espaço público (Caos Planejado, 2022).

Pensar nessas questões é incumbência até mesmo dos arquitetos de edifícios particulares, em espaços privados, não necessariamente àqueles que se dedicam a desenhar o espaço público. A professora mostra que, mesmo no desenho de um edifício particular, em espaço privado, há caminhos possíveis para um aprimoramento do espaço público imediatamente circundante (Caos Planejado, 2022). Daí nasce a ideia da arquitetura gentil e sua antítese, a arquitetura hostil (idem).

As características de um edifício gentil

Segundo a professora (Tenorio, 2022), há várias características de edifícios que, comprovadamente, tendem a favorecer uma experiência positiva para as pessoas que circulam pela cidade, como a ausência de recuos frontais ou laterais, portas e janelas que se abrem para o espaço público, permeabilidade visual no nível do térreo ou fachadas ativas. Um design que leve em consideração esses pontos pode dar um “presente” de retribuição à cidade que o abriga, valorizando-a, bem como ao seu entorno e valorizando-se, principalmente.

A professora elenca oito características que descrevem um edifício gentil:

1. Estar na altura do solo

Trata-se da integração da sua fachada do térreo ao espaço público, demonstrando-se acessível a quem passa, sem se separar do fluxo da calçada.

2. Alinhamento e configuração com o espaço público em mente

É a organização da fachada de tal maneira que ela se volte ao espaço público circundante, tratando todas as fachadas voltadas para logradouros públicos como uma frente.

3. Priorização do pedestre em relação ao automóvel

É evitar colocar bolsões de estacionamento entre a sua fachada e a rua, dando continuidade à rua, sem promover estrangulamentos ou bloqueios. Leva em consideração paradas de ônibus, ciclovias, faixas de pedestres, entre outros elementos que são centrais para a experiência urbana, para o seu desenho. Assim, coloca suas rampas de acesso e garagens, por exemplo, em lugares que não perturbem a experiência do cidadão.

4. Abre portas para o espaço público

As entradas principais do edifício são para os pedestres, sendo claras e evidentes, colocando-as no nível da rua, no térreo. Prioriza transparências a opacidades nessa fachada.

5. Abre janelas para o espaço público

É pensado de forma a trazer mais transparência ao edifício, colocando janelas e/ou varandas nas faces voltadas aos logradouros públicos, inclusive nos pavimentos superiores. Isso garante que o espectador do prédio não se sinta como se ele estivesse vendo as suas “costas”.

6. Não delimita o seu espaço com elementos opacos

Muros clássicos são rejeitados nos edifícios gentis, dando lugar a elementos que permitam a permeabilidade visual ou outras estratégias de transição. Isso permite um esmaecimento da transição entre o espaço público e o privado, ainda que estejam delimitados, mas evitando um choque abrupto entre esses dois domínios.

7. Não utiliza elementos para afastar pessoas.

Não recorre à arquitetura hostil para evitar que as pessoas interajam com eles, impedindo que as pessoas se sentem, deitem ou mesmo se aproximem dele.

Essa prática de colocar pedras, grades ou outros elementos hostis nas fachadas de prédios é muito comum nos grandes centros brasileiros, sendo comumente usada para afastar moradores de rua. No entanto, acabam por ter um efeito rebote de afastamento do público em geral.

8. Preocupa-se com o microclima exterior

Há uma preocupação em não colocar em sua fachada elementos que possam trazer uma piora no microclima daquela região em que se insere. Assim, sua existência não seria um fator de perturbação para a qualidade de vida das pessoas da área. Esse prédio não utiliza revestimentos que ocasionem desconforto térmico ou ofuscamento aos cidadãos, nem equipamentos que possam irradiar calor ou ruídos para o exterior.

Torre “Walkie-Talkie” em Londres, conhecida pelo desconforto térmico que causa por conta de sua estrutura em vidro côncava. Já derreteu até mesmo a lataria de um carro. Um exemplo de arquitetura hostil. Imagem: Unsplash.

Rio de Janeiro: um domínio da arquitetura hostil

Como carioca, já me deparei com diversos edifícios hostis espalhados pela cidade do Rio de Janeiro. É até endêmico. Há verdadeiros arranha-céus com fachadas cinzentas, sem uma única janela, com um péssimo aproveitamento. E, inclusive, dentro de um movimento de repensamento das ações humanas de um ponto de vista do impacto ecológico, vê-se que é um desenho atrasado, que não aproveita o máximo da entrada da luz solar.

Um passeio pelo centro do Rio pode revelar muitas dessas características de hostilidade. Andar pela Av. Presidente Vargas, por exemplo, é uma experiência que pode ser classificada como hostil: um muro de prédios unidos que avançam sobre a calçada e cujas pilastras obstruem uma visão plena da rua, obrigando o pedestre a passar por baixo das marquises. Porém, vale o destaque de que, segundo o plano original, essa passagem cumpre uma função dúbia. Ao mesmo tempo que é hostil (especialmente pelo seu estado de conservação e de limpeza), acolhe o pedestre e o protege das intempéries. Havia um pensamento, inclusive, de substituir a arborização da rua por essas marquises. Sobre essa ideia em sua acepção original para a Av. Presidente Vargas, coloca Pedro Sousa da Silva (2018):

A confiança na atração de investimentos imobiliários e no preenchimento dos espaços vazios a médio prazo era tanta que os construtores da via dispensaram a arborização das calçadas pois a proteção contra os rigores do tempo seria assegurada pelos passeios cobertos exigidos dos edifícios a serem construídos

E essas escolhas da época reverberam até hoje:

Prédios que invadem a calçada na Av. Presidente Vargas, Rio de Janeiro (Google Street View, 2021)
Lateral de prédio sem janelas, mesmo sendo o prédio ao lado um prédio baixo. Cruzamento da Av. Rio Branco com a Rua da Assembleia. Acervo pessoal.
Edifícios sem janelas vistos do Largo de Santa Rita, Rio de Janeiro (Google Street View, 2021)

Não raro, as fachadas avançam e recuam nas calçadas, especialmente fora do centro. Na Zona Norte, ocorre o mesmo com relação aos avanços e recuos, porém são os muros que dançam pelas calçadas no lugar das fachadas em si. Muros opacos, altos e de tijolos são lugar comum nessa parte do subúrbio carioca, muitas vezes com cacos de vidros no topo, ou arames farpados ou eletrificados. Mesmo as casas com quintal têm muro, por questões de segurança.

E é também em nome da segurança que os condomínios da Barra da Tijuca se isolam, construídos de forma a separar a sua área interna do resto do mundo. Assim, o bairro se constrói completamente avesso ao pedestre e lotado de elementos de hostilidade do ponto de vista do planejamento urbano e arquitetônico.

Mas uma das principais características hostis e marcantes da arquitetura carioca é a que se vê logo abaixo.

O país dos pilotis fechados e dos embasamentos garagem

Se há uma marca positiva da arquitetura genuinamente brasileira, essa definitivamente é o uso do vão livre e dos pilotis, conferindo leveza ao desenho arquitetônico. Do Oiapoque ao Chuí, o Brasil se apoia em pilotis.

Pilotis no Palácio do Planalto. Acervo Pessoal

Os pilotis nascem como um dos cinco pontos-princípios elencados por Le Corbusier (1925) na arquitetura moderna, cuja ideia era de elevar o prédio para criar um espaço de circulação independente das ruas e calçadas.

[Com os pilotis] Un réseau entier de circulation, indépendant de celui des rues destinées aux piétons et aux voitures rapides, êut été gagné, ayant sa géographie propre, indépendante de l’encombrement des maisons. (Le Corbusier, 1925)

Na origem, havia uma acepção dos pilotis mais funcional do que social. Eram espaços de serviço e de circulação, mas não de permanência e sociabilidade. No Brasil, na vanguarda dos modernistas daqui, almejou-se uma reinvenção da proposta dos pilotis, que ganhariam, então, uma função de espaço social. Lúcio Costa foi um dos que tiveram essa acepção (Caos Planejado, 2022).

Porém, sem dialogar com o público sobre a função dos vãos livres dos pilotis, alguns tenderam a querer subvertê-los à sua função original ou subvertê-los por completo. Alguns prédios colocaram grades nos vãos livres. Alguns outros não permitem a permanência.

No Rio de Janeiro, em contraponto ao que ocorre em Brasília, os pilotis são raramente abertos. Conceição Freitas, em reportagem, alega ter ouvido a surpresa de uma estudante paulista que teria percebido que alguns condomínios na capital federal não tinham grades (Freitas, 2019). O Rio fecha o vão livre em nome da segurança.

Pilotis cercados com grade na Rua Pinheiro Machado, na esquina com a Rua Paissandu. Google Street View, 2022.

No fim, a elevação trazida pelos pilotis, conjugada com o fechamento do vão por grades, resulta na função quase única de exclusão e distanciamento do prédio da rua. O espaço da rua vira algo de repulsa ou medo, algo que o usuário precisa evitar e do qual precisa ser protegido. Mas há ainda uma maneira ainda mais expressiva que foi posta em prática no Rio de Janeiro para aumentar ainda mais essa segregação por altura.

Se os pilotis são uma marca registrada positiva da arquitetura brasileira, a marca negativa é a instalação de embasamentos garagem, muito comuns no Rio de Janeiro. Refere-se à instalação de pavimentos-garagem elevados, distanciando as unidades habitáveis da rua. David Cardeman e Rogério Goldfeld Cardeman (2022) sugerem que essa prática é “um dos maiores equívocos da nossa história urbana”.

A origem, conforme apontam Cardeman e Cardeman (2022), remontam à “Lei das Garagens”, de 1957, e do Decreto nº 52/75. Esses instrumentos normativos obrigaram a construção de estacionamentos de veículos nos prédios novos. Os pavimentos destinados a esse fim eram, inclusive, excluídos da conta para efeitos do gabarito e dos afastamentos frontais, laterais e dos fundos. O resultado? edifícios que se afastaram, cada vez mais, do nível da rua. Os incentivos para o afastamento foram todos dados, ainda mais em um contexto de incremento da preocupação com a questão de segurança pública.

Prédio com embasamento garagem na Rua São Clemente. Google Street View, 2021

Há espaço para gentileza arquitetônica

Há alguns prédios na cidade que podem ser considerados gentis, cumprindo todos os requisitos. São mais gentis, no Rio, os prédios que têm alguma relação com cultura. São exemplos proeminentes o Museu do Amanhã e o Paço Imperial, prédios separados por quase 300 anos, mostrando que é uma questão que transcende a arquitetura moderna. Ambos são edifícios que se encontram na altura do solo, priorizam o pedestre, suas fachadas se voltam para o espaço público, possuindo janelas que circundam todo o seu perímetro externo. Integram-se com o ambiente circundante sem a utilização de elementos opacos para a sua delimitação, nem elementos que afastem pessoas e sem alterar o microclima da região.

Ao caminhar no entorno de ambas as edificações, é notável a experiência agradável proporcionada aos cidadãos, que têm, nos espaços do entorno, uma zona de lazer e proveito.

Museu do Amanhã, acervo pessoal
Paço Imperial, acervo pessoal.

Conclusão: por mais edifícios gentis!

A questão principal é trazer esses elementos para a regulação da construção civil nas cidades, de modo a que se crie incentivos jurídicos e econômicos para evitar a hostilidade na arquitetura. Na verdade, é possível até mesmo pensar em promover a internalização de externalidades negativas arquitetônicas, porque o prédio dialoga com o espaço público e gera efeitos na sociedade, no espaço urbano e para os transeuntes. Ainda, implementar a gentileza nos desenhos arquitetônicos traz um ganho à coletividade, ao entorno e até ao agente implementador, na medida em que melhora a experiência dos usuários (cidadãos) e valoriza a região, além de possibilitar um melhor proveito do seu direito à cidade.

Porém, na realidade brasileira, ainda há desafios a serem superados para a plena implementação de todas as características listadas como definidoras da “gentileza arquitetônica”, em especial à luz dos problemas históricos que as nossas cidades enfrentam, como a questão da segurança, que pautam a arquitetura (hostil) dos prédios da atualidade. No entanto, a arquitetura gentil é, definitivamente, um norte a ser seguido e um projeto a ser implementado no longo prazo para melhorar a vida e os usos da cidade para todos.

Referências

CARDEMAN, David; CARDEMAN, Rogério Goldfeld. Edifício gentil: Como apareceram os embasamentos no Rio de Janeiro: Embasamentos distanciaram as unidades habitáveis do nível da rua e talvez seja um dos grandes equívocos em nossa história urbana. [S.l.]: Caos Planejado [online], 2022. Disponível em: Como apareceram os embasamentos no Rio de Janeiro (caosplanejado.com). Acesso em 28/09/2022.

CAOS PLANEJADO: #56 Cidades Gentis (com Gabriela Tenorio). LING, Anthony: LING, Anthony, TENORIO, Gabriela. 09/03/2022. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/0ir1RmGPZvWSG1nzreQyvL?si=3cf013725c844f20. Acesso em: 28/09/2022.

FREITAS, Conceição. Pilotis dos blocos das superquadras, a utopia que não fracassou: Os vãos livres são a prova cotidiana (e brasiliense) de que é possível vida coletiva de qualidade sem a prisão dos condomínios fechados. [S.l.]: Metrópoles [online], 2019. Disponível em: Pilotis dos blocos das superquadras, a utopia que não fracassou (metropoles.com). Acesso em: 28/09/2022.

LE CORBUSIER [JEANNORET, Charles-Édouard]. Vers une Architecture. Paris: G. Crès et Compagnie, 2ª ed. 1925. Disponível em: Vers une architecture (mondotheque.be). Acesso em: 28/09/2022.

TENORIO, Gabriela. Edifício gentil: como a arquitetura pode melhorar a nossa cidade: Conheça o conceito de edifício gentil, aquele que que é generoso com a cidade e melhora a experiência dos pedestres. [S.l.]: Caos Planejado [online], 2022. Disponível em: Edifício gentil: como a arquitetura pode melhorar a nossa cidade (caosplanejado.com). Acesso em 21/09/2022.

SILVA, Pedro Sousa da. Avenida Presidente Vargas: a Fúria Demolidora da Reforma Urbana do Estado Novo na Cidade do Rio de Janeiro (1938–1945). Niterói: Revista Cantareira, Ed. 29, 2018. Disponível em: https://periodicos.uff.br/cantareira/article/download/30773/17879/105893. Acesso em: 28/09/2022.

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